José Saramago (1922-2010)

José Saramago morreu hoje, aos 87 anos. Para lá de debates e polémicas, e até para lá do Nobel, o único que a literatura portuguesa recebeu, fica uma obra extensa e essencial, o mais precioso dos testamentos, a matéria a que haveremos de regressar independentemente do ruído e da passagem do tempo.

(José Saramago, fotografado por Daniel Mordzinski)

Em jeito de homenagem, escolho um texto recente, publicado em O Caderno (Caminho/Fundação José Saramago, 2009, pg.33):

BIOGRAFIAS

Creio que todas as palavras que vamos pronunciando, todos os movimentos e gestos, concluídos ou somente esboçados, que vamos fazendo, cada um deles e todos juntos, podem ser entendidos como peças soltas de uma autobiografia não intencional que, embora involuntária, ou por isso mesmo, não seria menos sincera e veraz que o mais minucioso dos relatos de uma vida passada à escrita e ao papel. Esta convicção de que tudo quanto dizemos e fazemos ao longo do tempo, mesmo parecendo desprovido de significado e importância, é, e não pode impedir-se de o ser, expressão biográfica, levou-me a sugerir um dia, com mais seriedade do que à primeira vista possa parecer, que todos os seres humanos deveriam deixar relatadas por escrito as suas vidas, e que esses milhares de milhões de volumes, quando começassem a não caber na Terra, seriam levados para a Lua. Isto significaria que a grande, a enorme, a gigantesca, a desmesurada, a imensa biblioteca do existir humano teria de ser dividida, primeiro, em duas partes, e logo, com o decorrer do tempo, em três, em quatro, ou mesmo em nove, na suposição de que nos oito restantes planetas do sistema solar, houvesse condições de ambiente tão benévolas que respeitassem a fragilidade do papel. Imagino que os relatos daquelas muitas vidas que, por serem simples e modestas, coubessem em apenas meia dúzia de folhas, ou ainda menos, seriam despachados para Plutão, o mais distante dos filhos do Sol, aonde de certeza raramente quereriam viajar os investigadores.

Decerto se levantariam problemas e dúvidas na hora de estabelecer e definir os critérios de composição das ditas “biobliotecas”. Seria indiscutível, por exemplo, que obras como os diários de Amiel, de Kafka ou de Virginia Woolf, a biografia de Samuel Johnson, a autobiografia de Cellini, as memórias de Casanova ou as confissões de Rousseau, a par de tantas outras de importância humana e literária semelhante, deveriam permanecer no planeta onde haviam sido escritas para que fossem testemunho da passagem por este mundo de homens e mulheres que, pelas boas ou más razões do que tinham vivido, deixaram um sinal, uma presença, uma influência que, tendo perdurado até hoje, continuarão a deixar marcadas as gerações vindouras. Os problemas surgiriam quando sobre a escolha do que deveria ficar ou enviar ao espaço exterior começassem a reflectir-se as inevitáveis valorações subjectivas, os preconceitos, os medos, os rancores antigos ou recentes, os perdões impossíveis, as justificações tardias, tudo o que na vida é assombração, desespero e agonia, enfim, a natureza humana. Creio que, afinal, o melhor será deixar as coisas como estão. Como a maior parte da melhores ideias, também esta minha é impraticável. Paciência.

Notícia no Público, Diário de Notícias, i, Jornal de Notícias, Sol, El País, El MundoNew York Times.

ACTUALIZAÇÃO: Em comunicado a Fundação José Saramago informa que “o corpo do Escritor se encontra hoje na Biblioteca José Saramago, em Lanzarote. Na sala José Saramago da Fundação César Manrique, em Arrecife (Lanzarote), leitores da sua obra procederão a leituras espontâneas. Amanhã, dia 19 de Junho, um avião do Estado português transportará o corpo para Lisboa, estando prevista a sua chegada ao Aeroporto de Figo Maduro pelas 12.30 Horas, de onde seguirá em cortejo para o Salão Nobre da Câmara Municipal de Lisboa. Aí permanecerá em câmara ardente até às 12 horas de Domingo, dia 20 de Junho, de onde sairá para o Cemitério do Alto de São João, onde será cremado.
Para conhecimento de todos os que queiram prestar homenagem a José Saramago, informa-se que o corpo estará em câmara ardente entre as 13.30 e as 24 Horas de Sábado, dia 19 de Junho, e a partir das 09 até às 12 Horas de Domingo, dia 20 de Junho.”

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