Elias Canetti, Auto-de-Fé, Cavalo de Ferro

Numa altura em que o senhor de bigodinho ridículo mandava queimar livros, entre outros combustíveis, por essa Europa fora, Elias Canetti escrevia um romance que tem na destruição de livros o seu eixo. O protagonista deste Auto-de-Fé é um bibliómano insuportável, com uma incapacidade nata de se relacionar com outros seres humanos ou de ter qualquer interacção proveitosa que não seja com os volumes da sua biblioteca. A pouca empatia que por ele se pode ter quando a narrativa começa, sobretudo se o leitor for um apreciador de livros e de bibliotecas silenciosas e com espaço para aquele swing de prateleiras tão prazenteiro, desaparece assim que se percebe que Kien não vê no que lê qualquer reflexo da humanidade, mas antes um refúgio idealizado, uma espécie de toca que acredita ter sido erguida apenas para seu uso pessoal, uma toca inatingível para o resto dos mortais.

Quando Kien decide ceder ao apelo das relações humanas, casando com Teresa, a governanta que zela pela integridade da biblioteca, não é porque sinta necessidade de afecto, mas antes porque o casamento lhe parece a melhor forma de assegurar a protecção dos seus milhares de livros, já que Teresa parece tratar bem deles. E quando ao casamento se sucedem as contrariedades, desde a revelada ignorância de Teresa ao aparecimento do irmão de Kien, obrigando-o a abdicar do seu sossego tão precioso e do convívio constante com os livros, a derrocada está pronta. Chegará sob a forma de fogo, o pesadelo de qualquer bibliófilo, e assinalará a tragédia por entre o requinte humorístico e às vezes sarcástico que atravessa a narrativa. E é precisamente esse requinte que desculpa o facto de aqui se recorrer ao resumo do enredo, porque não é do enredo que se alimenta Auto-de-Fé, mas antes da afiada descrição de rotinas, do humor negro que revela a inutilidade dessas rotinas e de uma coisa aparentemente singela, que explica por que é que até um bibliófilo com medo do fogo não deixará de sorrir ao ver esta biblioteca destruída – a vocação para a falta de comunicação de um amante de livros que pensa que o resto do mundo, obviamente ignorante, não merece aceder aos tesouros impressos que guarda, tem o seu equivalente no senhor de bigodinho ridículo que pensava que o resto do mundo, obviamente impuro, não merecia aceder a quaisquer tesouros. Entre ambos, a narrativa de Elias Canetti constrói uma ponte mais eficaz na denúncia da barbárie (onde os livros são um pormenor, mas cheio de significado) que mil panfletos com a história bem contada.

Sara Figueiredo Costa
(publicado na Time Out, Jun.2011)

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