Afonso Cruz, O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, Caminho

Na discussão sobre a quimera da literatura de qualidade, o tópico que opõe uma boa história a uma história bem escrita costuma encerrar-se com sucesso quando se arrasa a sua validade. É que não se trata de opor, e sim de encontrar os eixos onde as duas coisas se encontram, de preferência no encalço daquilo a que chamamos perfeição.

Agora que os potenciais leitores estarão a temer que isto descambe numa dissertação sobre a busca do absoluto nos meandros da literatura, avance-se para uma justificação capaz de os apaziguar. É que O Pintor Debaixo do Lava-Loiças, novo romance de Afonso Cruz, tem como centro aquilo a que se pode chamar uma boa história: nascido nos últimos anos do século XIX, na quase ruína do império Austro-Húngaro, Jozef Sors cresce a descobrir o mundo a partir daquilo que desenha, tropeça constantemente na rigidez e no método que impõe à sua vida e acaba na Figueira da Foz, protegendo-se da perseguição aos judeus debaixo do lava-loiças de uma família que decide acolhê-lo e que permite que esse espaço exíguo, entre canos e algum bafio, se torne a sua casa. Um homem a viver debaixo de um lava-loiças tem potencial, como enredo, e mais potencial ganha quando percebemos que tudo isto se baseia em factos reais, que ocorreram com os avós do autor, mas convenhamos que nem os factos reais garantem boas narrativas, nem as boas narrativas dependem apenas do seu enredo.

E lá voltamos ao início, agora com menos palavreado. Partindo de uma boa história, Afonso Cruz constrói um extraordinário romance sobre o modo como a linguagem, não necessariamente verbal, é o único modo viável para compreender o mundo. Podia falar-se do nervo, dos muitos nervos que esta história toca com elegância e eficácia, mas tudo isso nasce e morre com a aprendizagem de Sors sobre o que o rodeia. Se o seu pai era incapaz de compreender qualquer metáfora, ignorando a mecânica dos segundos sentidos, e se o seu amigo de infância, Wilhelm, vivia obcecado com as palavras que não foram concretizadas, procurando nos clássicos da literatura aquilo que lá não estava escrito, Sors nasceu com a consciência inquietante de que é preciso organizar o mundo na cabeça de cada um, e é isso que faz ao longo da vida (agora era um bom momento para falar do bildungsroman, o palavrão alemão para ‘romance de formação’, mas isso era quebrar a promessa de há umas linhas atrás…). Pode parecer banal, mas todos os dias constatamos que uma parte considerável da humanidade ainda não se deu conta de tão simples necessidade.

Sara Figueiredo Costa
(publicado na Time Out, nº201, Agosto 2011)

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