Livraria Portugal

Nunca vi Natália Correia ao vivo, mas tenho dela uma imagem muito nítida, de cigarro na ponta de uma enorme boquilha, cabelo armado e os gestos fulgurantes a pontuarem uma fala segura e sonora. Encostada ao balcão da Livraria Portugal, Natália Correia perorava sobre a poesia portuguesa, enquanto os clientes da casa, muitos deles escritores, ouviam e rebatiam, ou fingiam não ouvir. É uma memória muito definida, tão definida que não é minha, apesar de integrar sem risco de falsidade maior do que tantas outras o meu acervo pessoal de memórias. É uma memória da minha mãe, que eu ouvi tantas vezes e que imaginei com tanta dedicação que passou a ser minha. E era uma memória da minha avó, caixa na Livraria Portugal durante muitos anos. Na verdade, a Livraria Portugal, onde só entrei mais tarde, quando comecei a vir para Lisboa sozinha (é uma espécie de ritual de passagem suburbano, vir a Lisboa de modo independente), forneceu-me muitas memórias como esta, episódios a que não assisti mas que se colaram ao meu imaginário sem nenhuma diferença relativamente àquilo que se consideram memórias realmente experimentadas: Vergílio Ferreira escolhendo livros na estante, David Mourão-Ferreira parando para respirar, entre livros, o sossego que não lhe dariam as suas muitas pretendentes, os recados que se deixavam, a minha tia trabalhando durante um tempo no andar de cima, aquele que tem as janelas para a rua, os livros que pediam à minha avó para esconder debaixo do balcão, não fosse a PIDE aparecer para os apreender, e que mais tarde eram passados a outra pessoa, a minha mãe, miúda, a espreitar as novidades, abrindo os livros com todo o cuidado e lendo de uma ponta à outra os volumes que não podia comprar, as discussões que por vezes estalavam entre gente das letras, umas vezes motivadas por barricadas estético-literárias, outras por histórias de cama mal contadas. Quando eu comecei a ir à Livraria Portugal já nada disto era assim, claro. A minha avó estava reformada, a minha tia trabalhava noutro sítio e a minha mãe já podia comprar alguns livros; Natália Correia aparecia na televisão, num programa chamado Mátria, David Mourão-Ferreira aparecia com o seu cachimbo na mercearia de uma aldeia onde eu também crescia, e a PIDE, felizmente, já tinha acabado há muito, entre tanques cobertos de gente e cravos que também hão-de ter passado pela Rua do Carmo. Agora, setenta anos depois de abrir as portas, a Livraria Portugal vai ter de fechá-las. A notícia vem em vários jornais, nomeadamente no i, onde António Machado, funcionário da livraria há 40 anos, explica que a situação é “insustentável com as grandes alterações no mercado livreiro, a quebra das vendas e a insuficiência de meios para pagar as despesas”. E diz mais: “Os livros vendem-se hoje em todo o lado: nas grandes superfícies, na internet, nos correios, a preços e com condições que não podemos acompanhar“. Suponho que isto seja o progresso, o mundo a funcionar, o inevitável e blá, blá, blá. Pela minha parte, estou muito triste.

12 comments

  1. O meu pai e a minha mãe também trabalharam na Livraria Portugal. Foi lá que se conheceram. Também o meu me contou as histórias da guerra, quando informava à embaixada britânica a lista de livros e revistas copradas pelas embaixadas alemã e japonesa. Tenho uma fotografia do dia da vitória, quando os empregados da livraria, a minha mãe entre eles, a celebravam em uníssono com o povo de Lisboa. Virada para sempre mais uma página de um livro que ficou por escrever. E por vender.

  2. Obrigada.
    E se calhar, Pedro, os seus pais e a minha avó ainda se cruzaram.

  3. A minha mãe está óptima aos 90. Vou ver se encontro a foto de que lhe falei. Talvez a sua avó esteja nela.

  4. Fico feliz por sabê-lo, Pedro. E obrigada (cá espero a fotografia, se a encontrar).

  5. Não, não é o progresso a funcionar. E’ o contrario. E’ o sintoma, patético, de um pais em que o acesso aos bens não foi acompanhado pelo progresso dos habitos de leitura, e menos ainda pela elevação da população ou pelo seu acesso aos bens culturais.

    O desaparecimento da livraria Portugal, uma livraria de fundo, em beneficio dos supermercados, da Fnac e da Internet, é sinal de que não existe em Portugal uma camada de população que necessita de ver os livros que se publicam, ou de os manusear, antes de os adquirir. Ou seja, significa que, quanto a livros, continuamos a ser um pais de provincianos que se satisfazem desde que possam ler as badanas do que se publica em Nova Iorque ou em Berlim (o que podem de facto fazer na Internet), pois isso permitir-lhes-a brilharem no café e manterem o estatuto de cultos.

    Agora abrir os livros, saber o que se escreve em Portugal – e não apenas o que a sopa pronta-a-servir que as editoras querem colocar nas estantes – esta quieto !!!

    O seu colega José Mario Silva, por exemplo, escreve de maneira despreocupada que ele ia à Portugal “nos tempos pré-Fnac”. Isto emana de uma pessoa com pretensões à cultura livresca ! Esta tudo dito.

    Ha umas décadas, ardiam os armazens do Chiado e uma pastelaria que existia em frente. Era então voz corrente que estavamos perante um terramoto semelhante ao de 1755. As pessoas que eu conhecia nesta terra mitica chamada “o Estrangeiro” perguntavam-me com ar de preocupação se eu não tinha nenhum familiar vitimado.

    Hoje fecha a livraria Portugal e as poucas pessoas que ligam à noticia param um pouco e dizem “ah ja sei, é aquela na rua da FNAC”.

    Com a livraria Portugal, o que desaparece não é o passado. E’ a possibilidade de pensarmos que este pais ainda tem futuro.

    Boas

  6. O fim da Livraria Portugal é, também, para mim, uma notícia triste. Como muitos dos comuns estudantes, também eu aí folheei avidamente alguns livros, procurando reter na memória a informação que não podia comprar. Depois, para redimir o meu gesto clandestino, procurava comprar um livrinho mais barato que me fosse igualmente útil.
    Recordo o quanto o meu sogro gostava de ir à Livraria Potugal encomendar os livros da sua predilecção e do prazer que lhe dava folhear as novidades.
    Sei que só a mudança é eterna, mas ver desaparecer mais este espaço confirma a inevitabilidade de um fim que se procura sempre adiar.
    espaço

  7. Caro Pedro, Também a minha mãe conheceu o meu pai na Livraria Portugal. Ela era “caixa” e o meu pai trabalhava na secção dos Livros Técnicos. Luís e Mafalda. Tanto o meu pai como a minha mãe já faleceram. Ele em 2009 e minha mãe antes do Natal do ano passado (2011) com 90 anos de idade. Tínhamos, eu e minha mãe ido à livraria matar saudades pouco tempo antes do seu falecimento. Os meus pais teriam tido, seguramente, um grande desgosto se tivessem tomado conhecimento da morte da Livraria!…
    A minha mãe está nessa célebre fotografia!…

Deixe um comentário